Internamentos, cirurgias e procedimentos ambulatórios complexos estão suspensos; há até ‘rodízio de luva’
A situação começou a piorar do início do mês para cá e o médico Fabiano*, nome fictício, percebeu que o Hospital das Clínicas havia chegado no limite quando precisou de luvas para fazer um curativo e o técnico de enfermagem respondeu que não poderia atender ao pedido. Era necessário fazer um rodízio de liberação, o colega informou, com maior intervalo entre os procedimentos, pois faltavam luvas e materiais, como gaze, algodão, seringa e álcool. Os internamentos, cirurgias e procedimentos ambulatórias complexos estão suspensos.
Naquela tarde em que precisou de luvas para recolocar o curativo de um paciente, foi a primeira vez que Fabiano ouviu falar na necessidade de um intervalo maior entre os curativos. A troca que seria diária passaria a ocorrer a cada dois dias. Aquela indicada para a cada dois dias passaria para três e por aí vai. Isso aumenta o risco de infecção. “As luvas que estavam sendo usadas para procedimentos simples como banho eram [do tipo] estéreis, que são apropriadas procedimentos com risco de contaminação, que são muito mais caras”, contou
Os residentes anunciaram greve – 90% dos 30 médicos residentes aderiram – em 4 de dezembro. Eles alegam que o aprendizado está comprometido, já que o Hupes é um hospital universitário onde os futuros profissionais de saúde vinculados à Universidade Federal da Bahia (Ufba) são formados na fase final, e o atendimento ao paciente, completamente prejudicado. Anualmente, em média, 518 estudantes de Medicina fazem residência no hospital.
Alunos de nove cursos de saúde – como Enfermagem – também atuam na unidade, a depender da época do estágio. A enfermaria dedicada a pacientes com coronavírus foi desativada em agosto, depois de cinco meses de funcionamento.
O clima dentro do Hupes é de “profunda desolação e triste”. “Nunca pensamos que passaríamos por uma situação crítica a este ponto”, desabafou outra médica. O hospital é gerido, desde 2013, pela Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh), vinculada ao Ministério da Educação, que administra 40 outros hospitais universitários. O Hupes não respondeu aos questionamentos da matéria em relação à falta de insumo até o fechamento da publicação.
Em agosto deste ano, o CORREIO publicou uma reportagem sobre a crise vivida pelo Hupes. Naquela época, a reportagem teve acesso a agenda de cirurgias marcadas e calculou que, em média, 20% dos procedimentos eram cancelados por problemas estruturais – como ar-condicionado quebrado – e falta de insumos.
Procurado, o Hupes afirmou que mantém “abastecimento regular dos itens mencionados”, mas por conta da pandemia tem tido dificuldades na compra e recebimento de alguns materiais. Disse também que segue orientações da Secretaria de Saúde da Bahia (Sesab) sobre a suspensão de cirurgias eletivas. Leia a nota completa ao final da matéria.
Confusão na sucessão
O Hospital das Clínicas vive, ainda, um momento de instabilidade relacionada à gestão. Na unidade, desde as eleições que elegeram Antônio Carlos Lemos como superintendente, existe um racha que pode levar até a exoneração do gestor e médico e sua equipe. Depois de quase três horas de reunião, no dia 30 de novembro, os membros da Comissão de Normas e Recursos, do Conselho Universitário, decidiram, por nove votos contra um, acatar o pedido de anulação do processo eleitoral.
A Ufba informou à reportagem que recebeu o parecer do Consuni e encaminhará ao Conselho Gestor do Hupes um despacho informando a decisão de anulação da consulta à comunidade realizada em 2018, e solicitando a realização de uma nova consulta, para escolha do nome a ser indicado à Ebserh, pela UFBA, para ocupar a direção do Complexo Hupes. Ainda não há prazo para isso acontecer.
Em 2013, a Ufba aderiu a uma segunda tentativa federal de melhora de gestão e transferiu a administração do Hupes para a Ebserh. Essa adesão pode ter sido motivada porque, em 2012, o Ministério Público da Bahia ajuizou uma ação contra a Ufba devido à precariedade no Hupes.
A mudança de gestão foi vista com esperança, na época. Porém, a desestruturação permaneceu. Os descontentamentos com o Hupes causam desinteresse de professores da Ufba em participar das atividades no hospital, relatam médicos e estudantes. “Muitos não têm mais aquela motivação”, diz um docente. Acontece de um médico ir ao hospital somente bater ponto, contou outra médica, e não realizar os procedimentos necessários. Além disso, os atrasos são constantes.
Descontinuidades
A crise do Hupes não é nova, mas tem ganhado novas proporções. Durante a Ditadura Militar, entre 1964 e 1985, o hospital viveu os primeiros problemas de financiamento. Na década posterior, fez parte do chamado Projeto Piloto de Reestruturação dos Hospitais Universitários do Ministério da Saúde, uma tentativa de melhorar a gestão desses hospitais. Mas as dificuldades permaneceram, como se vê.
O Hospital das Clínicas ainda oferece serviços de complexidade e conduz pesquisas internacionais, como o estudo global que investiga o impacto da leishmaniose em três países. É referência, por exemplo, na realização de cirurgias ginecológicas minimamente invasivas e no tratamento de doenças infectocontagiosas. Recentemente, o Laboratório de Infectologia foi pioneiro ao padronizar o uso da saliva para detecção do coronavírus.
Em outubro de 1968, o Hupes protagonizou um momento histórico. Pela primeira vez nas regiões Norte e Nordeste, era realizada uma sessão de hemodiálise.
Leia a nota completa do Hupes:
O Complexo Hospitalar Universitário Professor Edgard Santos da Universidade Federal da Bahia e vinculado à Rede Ebserh (Hupes-UFBA/Ebserh) informa que mantém o abastecimento regular dos itens mencionados: gaze, algodão, seringa, álcool e luvas tantos cirúrgicas quanto não-cirúrgicas. Em decorrência da pandemia, o Hupes, assim como outras instituições, tem tido dificuldades na aquisição e no recebimento de alguns materiais. A unidade concluiu recentemente diversos processos de compras de insumos e aguarda a entrega dos materiais pelas empresas vencedoras para reposição dos estoques das unidades.
Sobre o cancelamento de cirurgias, o Hupes tem seguido a Nota Técnica COE Saúde no. 66, da Secretaria de Saúde do Estado da Bahia, que recomenda a suspensão de procedimentos cirúrgicos eletivos em todo o Estado, até o dia 11 de janeiro de 2021, dentre outras orientações sobre o funcionamento dos serviços de saúde na vigência da pandemia pela Covid-19.
Sobre os atendimentos Covid, o Hupes não foi designado como unidade referência, mas chegou a abrir enfermaria para atendimento da doença. O local foi fechado em agosto, por conta da diminuição da demanda.
Atualmente os pacientes suspeitos de infecção por Covid-19 são encaminhados para isolamento, em enfermaria exclusiva, enquanto aguardam transferência imediata para hospital de referência no Estado.
Por fim, a unidade esclarece que não tem informação sobre o cancelamento do processo eleitoral.
Crédito: Correio 24 horas.