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Segunda onda, confirma: casos de covid-19 em cidades baianas disparam após eleições

Santo Antônio de Jesus é onde a doença mais se alastrou, com 76,5%; confira a situação dos maiores municípios
Eleições em SAJ tiveram passeatas e comícios dos principais candidatos
Foto: Reprodução/Instagram

Quem passava pela cidade de Santo Antônio de Jesus nos meses de outubro e novembro corria o risco de ser tragado pela multidão e parar numa carreata. As imagens da campanha, presentes até hoje nas redes sociais dos candidatos, estão aí para comprovar: centenas de pessoas nas ruas, carregando bandeiras azuis, amarelas e vermelhas; ou azuis, vermelhas e brancas. São as cores, respectivamente, do Jacu e do Beija-Flor, grupos que rivalizam há décadas a política local.

Em disputa acirrada estava o controle do 17º maior município baiano, com 101 mil habitantes, segundo o IBGE. Uma cidade às margens da BR-101, polo de serviços e de comércio que congrega as regiões do Baixo Sul, Recôncavo e Vale do Jiquiriçá. O comerciante Genival Deolino (PSDB) foi eleito prefeito com 53,8% dos votos válidos, desbancando o ex-deputado estadual Rogério Andrade (PSD), candidato à reeleição, que ficou com 43%.

Passados exatos dois meses desde o pleito nesta sexta-feira (15), é possível medir de forma mais precisa o impacto das aglomerações no período eleitoral. Será que, como se temia, a campanha seria precursora da temida segunda onda do coronavírus nas cidades baianas?

Santo Antônio de Jesus – ou SAJ, para os íntimos – é a cidade que registra o maior crescimento de casos de covid-19 entre as 20 maiores cidades da Bahia – com pelo menos 85 mil habitantes – desde o pleito. O número de contaminados cresceu 76,5% desde 16 de novembro, pulando de 2.842 naquela data para 5.016 na última quinta-feira (14). Os dados são da Secretaria de Saúde do Estado da Bahia (Sesab).

 

 

 

 

A taxa é quase o dobro do registrado na Bahia. Os casos de covid-19 no estado cresceram 39,5% desde as eleições. E chama atenção a proporção do aumento dos casos em SAJ quando comparado às demais grandes cidades: em segundo lugar, vem Vitória da Conquista, com 46,2%. Paulo Afonso aparece em seguida com 39,5%. Salvador é a 16ª nesse ranking, com 24% (veja a lista completa ao final da matéria).

EFEITOS

No dia 3 de dezembro, Luís Cláudio Oliveira, o Careca, vice-prefeito eleito de SAJ, foi internado num hospital local com covid-19. Uma semana depois, foi entubado na UTI e transferido para Salvador. No dia 13 de dezembro, Genival também testou positivo para a doença, assim como o seu motorista de campanha.

“Careca passou por um momento muito delicado, mas já está melhor e teve alta da UTI na semana passada (dia 5). Genival não teve nem sintomas, ele só fez os testes que deram positivo por conta da convivência com Careca”, explica o médico urologista Leonel Cafezeiro, novo secretário de saúde de Santo Antônio.

O próprio secretário, que é presidente do PSDB municipal e um dos líderes históricos do grupo Beija-Flor, teve a doença logo após as eleições. “No dia 18 (de novembro) eu tive os primeiros sintomas, mas não cheguei a ter a forma grave da doença. Não precisei me internar, fiquei isolado em casa e consegui me recuperar”, lembra.

Segundo os boletins da Vigilância Epidemiológica de Santo Antônio de Jesus, o mês de dezembro foi o que mais apresentou novos casos em toda a pandemia, com 1173. As segunda, terceira e quarta semanas do mês (de 06/12 até 26/12) foram as que mais apresentaram novos casos em todo o período. Logo em seguida vem a penúltima semana de novembro (22/11 a 28/11). Todas, portanto, logo após as eleições.

O boletim da última quinta-feira (14) aponta que Santo Antônio de Jesus fechou o dia com 153 casos ativos. É o maior registro divulgado pela própria prefeitura desde 26 de julho. O maior dado registrado em SAJ em toda pandemia foi de 172 casos ativos, em 8 de julho.

 

 

 

 

O CORREIO conversou com uma fonte da vigilância epidemiológica que não quis se identificar. Por conta da mudança recente na prefeitura, os funcionários estão com medo. “Como pode ser visto nos boletins, houve um aumento muito considerável no mês de dezembro de casos positivos. São números ainda maiores do que em julho, quando a pandemia estava, em teoria, no auge”, disse. O mês de julho fechou com 895 novos casos.

AS VÍTIMAS

Fernando Gomes é uma figura conhecida e querida em toda Santo Antônio de Jesus, seja por sua atuação como cirurgião vascular, seja pelo trabalho como pastor da Igreja Batista. Dr. Fernando – como é de fato conhecido – sensibilizou a cidade ao passar mais de 40 dias na UTI, em decorrência de complicações da covid-19. Ele recebeu alta no último dia 9, mas segue em reabilitação.

“Meu pai, apesar da idade, é saudável, não tem comorbidades. Ele brinca que, na vida inteira, só entrou em hospital para trabalhar. Por isso a gente esperava que ele não fosse complicar tanto”, diz o filho, também Fernando, que tomou o papel de informar nas redes sociais as centenas de pessoas que perguntavam diariamente por seu pai. Dr. Fernando, 71 anos, foi entubado e passou por uma traqueostomia.

“Ele começou apresentando apenas uma tosse discreta e fadiga. Em questão de cinco dias, de uma tomografia para outra, o acometimento pulmonar passou dos 10% para mais de 75%. Essa é realmente uma doença agressiva e imprevisível”, completa.

Fernando, o filho, também é médico, de especialidade intensivista. Estava atuando em leitos de UTI de covid-19 em Salvador, mas teve que abandonar a atividade para cuidar do pai, que ficou dez dias isolado em casa, antes dos sintomas graves. Nesse período, não só o filho, mas também a esposa de Dr. Fernando e a filha contraíram o vírus, mas não tiveram complicações.

“Você veja, eu e meu pai estávamos trabalhando desde o começo da pandemia em hospitais e não contraímos o vírus. No período eleitoral houve um decréscimo da notificação de casos e aí todo mundo meio que relaxou. Hoje, toda Bahia está sentindo os efeitos disso”, comenta o médico intensivista.

Fred Andrade tem 40 anos. Não é obeso, não tem diabetes, pressão alta, nem qualquer outra comorbidade. Ainda assim, ficou 20 dias na UTI de um hospital de Salvador, 10 deles entubado e em coma por conta da covid-19: “Saí na cadeira de rodas. Não conseguia andar, tomar banho, pentear o cabelo. Não conseguia fazer as tarefas mais simples do dia a dia. Foram 20 dias na cama, músculos debilitados. Com muita fisioterapia, consegui recuperar”.

O empresário deu entrada num hospital de SAJ no dia 12 de novembro. Dois dias antes, havia perdido a mãe, Dona Arlete, 70 anos, para a covid-19. “A explicação dos médicos era que meu psicológico estava muito abalado pela perda de minha mãe, o que afetou severamente a minha imunidade”, disse.

Os irmãos de Fred, um de 39 anos e outro de 41, pegaram covid-19 e se internaram na mesma semana: “A suspeita é de que a gente tenha se contaminado no enterro de nossa mãe. O mais velho ficou oito dias na UTI, mas não foi entubado. O mais novo, passou uma semana num leito clínico. Por isso, achamos que foi o abalo emocional”.

Fred também se envolveu com as eleições. Apesar de residir com a família em SAJ, ele era prefeito de Ubaíra, uma cidade vizinha, até o último dia 31 de dezembro. Não quis concorrer à reeleição, mas apoiou um dos candidatos e fez campanha.

“Nunca em minha vida tinha sido internado, para qualquer procedimento. E essa doença me levou no limite entre a vida e a morte. Foi de fato uma experiência de quase morte. As pessoas não têm noção, não levam a sério a gravidade que essa doença tem”, diz o empresário.

Fred continua: “Eu fico indignado quando vejo uma pessoa sem usar máscara. É um desrespeito. Eu sempre chamo e converso, digo ‘tenha cuidado com a sua vida’. Digo que fiquei 20 dias na UTI, passei 10 dias em coma. Faço tudo para conscientizar, mas é um trabalho de formiguinha”.

Dr. Fernando Gomes também participou das eleições. Foi candidato a prefeito na cidade de Mutuípe, vizinha a Santo Antônio de Jesus. Ficou em terceiro lugar. A família acredita que ele contraiu de uma pessoa que estava trabalhando com ele.

“A situação piorou muito depois das eleições. Ali todo mundo jogou pro alto, parecia Carnaval. Se você observar o número de novos casos em SAJ por semana em dezembro, foi algo terrível. E a tendência é perdurar em janeiro e em fevereiro, porque teve ano novo e muitas pessoas se descuidaram de novo”, opina Fernando, o filho.

PREOCUPAÇÃO

Para quem trabalha no atendimento aos casos, não há dúvida de que se trata de um efeito das eleições, abastecido por outros fatores típicos do final de ano:

“Só hoje (sexta-feira, 9, às 14h) já atendi oito pacientes com lesão pulmonar. Esses dias tem sido assim: 11 ou 12 por dia. Na semana passada, eram oito ou nove. Esses daí são os pacientes ‘da política’ e do Natal. Ainda vão vir aí os de Ano Novo”, diz Gil Couto, clínico geral que atende em um dos prontos-socorros do município.

Dr. Gil diz já ter atendido mais de 3,6 mil pessoas com suspeita de covid-19 desde março, sendo 426 comprovaram comprometimento dos pulmões. “É indiscutível que houve um crescimento após as eleições. Todo mundo foi pra rua, inclusive eu. Fica difícil numa campanha tão acirrada a população não querer abraçar o seu candidato. Muita gente sem máscara, às vezes bebendo. Eu não culpo as pessoas humildes não, porque elas não têm escolha. Eu culpo o serviço público, que não agiu para evitar isso”, desabafa.

O médico acredita que ainda há espaço para piorar. “Se você se contagia, leva cinco dias para começar a apresentar sintomas e sete ou oito dias para surgirem lesões de pulmão. Então, ainda estamos recebendo agora os pacientes do Natal. Os do Ano Novo vão começar a vir a partir do dia 15. E você vai ver, infelizmente, os casos ‘pocando’. Não sei se vou conseguir dar conta”, disse.

Curiosidade: o próprio Dr. Gil participou das eleições, na rua, e foi eleito o vereador mais votado da cidade. “É a doença mais grave que já atendi. Tenho 34 anos de medicina”.

Esse recorte mais recente, a partir das festas de Natal e Ano Novo, também é desfavorável para SAJ. Segundo os mesmos dados da Sesab, do dia 23 de dezembro (às vésperas do Natal) até a última quinta-feira (14), a taxa de crescimento de casos no município foi de 18,2%. Está atrás de Paulo Afonso, com 20,2% de aumento, e à frente de Vitória da Conquista, que registrou 14%.

 

 

 

 

O Ano Novo é especialmente preocupante para os locais por conta de uma característica dos santo-antonienses. As praias da Ilha de Itaparica estão a pouco mais de 70 km da cidade, e é comum que famílias possuam casas lá para aproveitarem os feriados. Segundo as autoridades locais, foi registrado um grande fluxo para Vera Cruz, mesmo em meio à pandemia.

“Estamos organizando uma campanha, para iniciar já na próxima semana, visando reforçar a conscientização e a divulgação das medidas preventivas. E também para orientar pessoas que estejam sintomáticas das unidades que temos à disposição e o que elas precisam fazer. Vamos fazer uma publicidade muito grande. Outdoor, rádios, sites, redes sociais, tudo o que pudemos fazer”, diz Dr. Leonel Cafezeiro, novo secretário de saúde.

ATENDIMENTO

SAJ dispõe desde agosto de um pronto-atendimento voltado exclusivamente para atender à covid-19, que conta com 12 leitos, sendo dois de UTI. O município também possui uma UPA 24 horas, treinada para receber e encaminhar pacientes.

A unidade de referência não só da cidade, mas de toda a região, é o Hospital Regional de Santo Antônio de Jesus (HRSAJ). A unidade de administração estadual tem mantido desde março 10 leitos, sendo cinco clínicos e cinco de UTI, destacados para a covid-19.

Tanto a unidade municipal quanto a estadual dizem manter um trabalho contínuo com a central de regulação da Sesab, de forma que os pacientes sejam transferidos para Salvador, a 190 km, e os 22 leitos da cidade não se esgotem.

“Esse aumento de casos demonstrado pela vigilância epidemiológica tem se refletido no número de atendimentos e internamentos da nossa unidade. Damos suporte a 32 municípios da região”, diz Antônio Carlos Assunção, diretor técnico do HRSAJ.

O médico busca explicar o aumento de casos em dezembro não só em SAJ, mas em toda a região: “Já estamos próximos de um ano de atividade de pandemia. Então a população está cansada do distanciamento social, do uso de máscaras, de todas essas questões rigorosas que a gente vem pedindo o tempo todo”.

“Nas eleições foi observado um deslize significativo nas condutas de prevenção por parte das lideranças políticas. E a gente percebe que logo depois desse período houve um aumento muito grande de casos. Aí vieram, em seguida, os festejos de final de ano. Esse conjunto de fatores fez com que os casos aumentassem, no nosso entendimento”, completa.

Mesmo quem participou do processo eleitoral reconhece os efeitos dele no crescimento de casos. “A campanha, de fato, teve um peso grande. Nenhuma cidade respeitou as regras (de distanciamento social), infelizmente. E logo depois da campanha veio o início do verão, pessoas indo para a Ilha (de Itaparica) nos finais de semana”, lamenta o secretário Leonel Cafezeiro.

 

 

Crédito: Correio 24 horas

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